
Vou começar com uma confissão.
Apesar de tentar me manter à parte do “mundo religioso” brasileiro (penso sobretudo no ambiente intelectualizado de forte viés tradicionalista dos cristãos e muçulmanos), há uma coisa com a qual, no entanto, me solidarizo e me compadeço com este meio, que é a aversão e a desconfiança que os seus membros nutrem à arte.
A arte, neste meio intelectualizado tradicionalista, é vista como uma espécie de raposa no galinheiro, pronta para papar os ovos e as galinhas da “virtude”, destruindo, com a sua “modernidade”, “vulgaridade”, ou, no mínimo, a sua “mundanidade”, os elos com a Tradição erigidos a duras penas pelos membros do grupo.
Eu não julgo mal quem pensa assim. Pois eu também padeci do mesmo problema durante muitos anos. Quando penso nos anos todos que perdi vivendo numa austera esterilidade artística devido às minhas crenças tacanhas sobre arte. Acho que é algo até certo ponto compreensível. Mas não algo natural.
Durante muitos anos, desde minha conversão ao Islam, em 2003, até 2012, quando me dei conta do meu erro, praticamente não assisti a filme algum, a não ser coisas “religiosamente corretas”, assistidas mais por piedade religiosa do que por anseio estético: a razoável biografia do Padre Pio, com Sergio Castellitto (excelente no papel), ou Risala — A Mensagem, filme sobre a vida do Profeta ﷺ que, apesar da nobre intenção, fica muito aquém do que poderia ter sido. Foi uma década na qual tive privilégios imensos, em aprendizado. Por outro lado, foi uma década tragicamente desperdiçada, devido ao meu tosco puritanismo anti-artístico.
A pobreza artística do longa Risala, obra sobre os primórdios do Islam, ilustra bem o dilema religioso e o fio da navalha sobre o qual os artistas trilham quando arte e religião se misturam. Apesar da indubitável qualidade técnica (a brilhante trilha sonora de Maurice Jarre, as atuações magníficas de Anthony Quinn e Irene Papas, aliás de todo o elenco nas duas versões, a belíssima fotografia de Jack Hildyard), há tantos empecilhos que as autoridades religiosas colocaram à sua realização, que é uma obra tímida: ok, mostrar o Profeta é algo problemático no Islam, então o Apóstolo de Deus não é mostrado no filme inteiro (Jarre e o diretor conceberam um truque bastante habilidoso aos momentos em que a câmera toma o ponto de vista profético, acompanhado de um belo e misterioso motivo musical). Porém, as autoridades religiosas objetaram também à presença no filme dos principais companheiros do Profeta. A coisa não parou por aí: como mostrar os atores rezando ou recitando o Alcorão, quando há diferenças entre os modos de fazer a oração e os modos de recitar o Alcorão, segundo as diversas escolas islâmicas, tanto sunitas quanto xiitas? Para evitar atritos entre os próceres das diversas escolas islâmicas, cujos modos de orar ou recitar fossem preteridos em prol do modo de outra escola (o filme teve entre os consultores juristas e teólogos da prestigiosa universidade Al-Azhar, no Cairo, e dos imams do Supremo Conselho Islâmico Shi’a do Líbano), o diretor e produtor Moustapha Akkad teceu uma rede de compromissos que enfraqueceram paulatinamente a história e a sua mensagem (perdão pelo trocadilho): um filme sobre o Islam que não mostra praticamente nenhum dos grandes santos dos primórdios da religião, muito menos da família do Profeta, um filme que não mostra ninguém rezando, não mostra nenhum momento de espiritualidade ou interioridade mística, enfim… um filme que, em certo sentido, é uma lacuna. Talvez a única coisa mostrada com rigor, e um certo relaxamento de censura, sejam as batalhas, o que, ironicamente, reforça o preconceito anti-islâmico ocidental, de que o Islam não passou de um movimento guerreiro de bárbaros do deserto. Khayr in sha’ Allah — que Deus abençoe Moustapha Akkad, que ao menos realizou o projeto, e, por mais anêmico que seja o longa (em ambas versões), ainda assim, por milagre, conseguiu passar um filete de espiritualidade, apesar da politicagem envolvendo os sábios sunitas e xiitas, oponentes históricos, contudo irmanados, nesta empreitada, no sequestro da beleza espiritual islâmica.
Este dilema entre manter-se fiel a si mesmo, ao que sinceramente se crê que deva ser a conduta pessoal e atitude interior, ou aderir ao espírito de compromisso, refreando e reprimindo a natureza pessoal, é o inferno em que vive o crente com aspiração artística, a todo o momento tendo de policiar-se, reprimir-se, refrear-se, ou simplesmente fingir ser outra coisa do que si mesmo, para conseguir caber no molde do bom comportamento esperado nos círculos religiosos — foi o que mais vi acontecer nos ambientes escolásticos islâmicos e cristãos nos quais convivi nos últimos vinte anos, no Marrocos e no Brasil.
A repressão ao impulso artístico é algo não só indesejável, mas impossível, pois ele é, na verdade, irreprimível, ele acontece, independente do artista querer ou não, pois é Deus mesmo que o instila nas veias do artista, é um Sinal da proximidade de Deus este impulso criador, que é constante. Um artista não consegue não estar criando, permanentemente — quando não está fazendo arte, está pensando nela: bolando tramas na cabeça, criando histórias e personagens, compondo melodias, meditando sobre as criações de outros artistas, ou comparando notas mentais entre a recepção crítica sua e de outrem a obras de arte, etc. Sobre isso, disse o dramaturgo e cineasta David Mamet, o artista é como um castor, que não pode ficar sem roer madeira, pois se não roer, seus dentes continuarão crescendo, e a hipertrofia dental terminará por feri-lo, ou até matá-lo. Por isso o bloqueio artístico é tão doloroso.
No Egito, segundo meu professor e amigo Dr. Ali Hussain, o temperamento artístico é chamado, jocosamente, de “dois traseiros numa só cueca”. De um lado, é uma expressão que se refere ao ego inflado de boa parte dos artistas, mas também exprime a sensação de permanente desconforto existencial da alma do artista, que sabe que possui dentro de si uma energia que precisa ser extravasada continuamente, por suas criações. Quando esta energia é reprimida (por exemplo, no sujeito que tem vocação artística, mas direciona todos os seus esforços não à arte, mas ao estudo de jurisprudência islâmica, algo que vi muito em convertidos muçulmanos europeus em Fez, no Marrocos), ela não escoa e se esvai, e também não tem como ser redirecionada a outras atividades: a vocação e a inspiração artísticas são dignidades especiais que Deus conferiu a alguns de seus eleitos, e Deus mesmo não permite que este impulso seja direcionado vulgarmente a outra atividade qualquer, até mesmo o estudo de teologia e filosofia, pois não foi a forma eleita por Deus para se comunicar com aquela pessoa em específico, de verve artística. Nada na Criação é em vão: ao artista, ser fiel à sua arte é uma forma de adoração (i’badah) e de estar em comunhão com Deus — “Pensais, porventura, que vos criamos em vão, e que jamais sereis trazidos de volta para junto de Nós?” [23:115]: este versículo da sura al-Mu’minum justapõe a ideia de finalidade da criação com destino ontológico último, que é o encontro final do ser humano com Deus. A forma, ou caminho, que se dará esta trajetória até o encontro final, é individual, própria e apropriada a cada um dos seres humanos. Quem é artista, terá em sua arte a forma com que se dará este encontro. Quando a vocação artística é reprimida e traída, essa energia vital que reside na alma do artista fica estagnada, apodrece feito água parada — ela se transforma em raiva e ódio. Aliás, estes são os sentimentos mais comuns que consigo detectar entre os alunos dos ambientes intelectuais descritos acima: são pessoas que não têm vocação ao estudo teológico, e que provavelmente se realizariam — pessoal e espiritualmente — por meio da arte. No entanto, motivados pelo preconceito puritano que permeia tais meios, tentam amputar a machadadas o impulso à arte. Em vão.
Uma crítica que fazem à arte moderna é que ela seria essencialmente corrupta, ou no mínimo banal. É um argumento sentimental. Eu, contudo, já me estendi demais neste artigo, e uma defesa da arte em terreno puramente metafísico — a única refutação possível a tais críticas — seria trabalhosa e demorada, mas gostaria de ao menos apontar a um fato, o de que a arte é essencialmente ambígua. No fim das contas, a arte é um espelho, com o qual o artista reflete leitor, espectador (ou receptor da obra de arte, para usar um termo geral) em seu interior. Lembro quando, tempos atrás, compartilhei no Facebook o link da canção “Pollyanna” (2021), do Green Day, recebendo uma mensagem de um leitor, muito educada, na qual, contudo, ele estranhava que eu, uma pessoa tão culta e refinada, me prestasse a ouvir uma coisa de tão pouca qualidade musical, na qual, como agravante, ele não sentia, na voz do vocalista (Billie Joe Armstrong), senão corrupção e baixeza. Nestas horas, sou muito cordato, e apenas contemporizei (que “ninguém precisava concordar comigo”), infelizmente, pois deveria ter respondido a ele, não com a intenção de “não levar desaforo para casa”, mas para mostrar-lhe que o artista dá a cada um o que lhe é mais apropriado, pois, em “Pollyana”, enquanto ele ouvia sujeira e corrupção, eu, em contrapartida, ficava energizado (e francamente entusiasmado) com o tom da canção, que me passava nitidamente a ideia de alguém que venceu os seus demônios. Tempos antes eu havia postado outro vídeo do Billie Joe Armstrong, no qual, com os filhos adolescentes, tocava uma versão de “I Think We’re Alone Now”, do Tommy James & the Shondells. Acho que um cara que, aos 45-50 anos, tem crédito e a admiração dos filhos adolescentes é um vencedor. Adolescentes têm um radar infalível para identificar a hipocrisia dos pais. Infelizmente, não lembro mais da identidade do leitor, mas gostaria de ter dito a ele que não é um bom sinal ficar excessivamente escandalizado com uma obra de arte ou a conduta de um artista, pois provavelmente o problema está em nós, e não neles. A arte é um espelho.
Escolhi como imagem ilustrativa deste artigo o famoso quadro de Gustave Doré sobre o círculo dos traidores no Inferno na obra-prima de Dante Alighieri. É um lago congelado de lamentações; o efeito da traição é paralisante como o gelo. Trair a nossa natureza, em nossa essência, é análogo a ficar submerso no gelo. Partes de nós mesmos gangrenam. No caso do artista que repudia sua vocação interior, a necrose da alma é o resultado destas buscas insinceras, ao tentar se integrar ao bom-mocismo dos ambientes intelectuais “religiosos” contemporâneos.
A via espiritual é um assunto que, para mim, beira a obsessão, e só falo essas coisas porque realmente me aflijo quando testemunho o conflito entre arte e espiritualidade em outras pessoas. Pois este conflito foi meu durante muito tempo. Não tê-lo resolvido a tempo deixou em mim sequelas de efeitos duradouros, dos quais alguns ainda convalesço. Quando uma pessoa se converte, é natural — e talvez seja mesmo necessário — que busque uma simplicidade (ou simplificação) em sua vida, reduzindo por exemplo o contato com o mundo “profano” — e também com a complexidade do mundo. Pois a intenção pessoal de interagir com o mundo se altera: o que antes era o prazer e a razão de viver da pessoa (o agito do mundo), passa a ser um fardo. Uma certa simplicidade na escolha das obras de arte a ler, assistir e ouvir seja talvez até mesmo salutar. Uma pessoa que busca uma via espiritual é como um enfermo, que durante a enfermidade não pode se alimentar a não ser de canja, chá, bolacha de água e sal. Mas isso tem que ter prazo para acabar. É uma ração que a pessoa pode consumir durante algum tempo. Mas a pessoa não pode levar uma vida à base dessa dieta, pois vai enfraquecer muito, o seu organismo vai se debilitar. Da mesma forma, a pessoa não pode levar uma vida toda só lendo “literatura edificante”. Pois a arte é o tubo de ensaio imaginativo para aprender a lidar com a complexidade da vida. Sobretudo, para desenvolver a capacidade de amor, compaixão e empatia aos outros seres. Tolkien, em O Senhor dos Anéis, pode ter exposto uma cosmologia perfeita (e a obra de certo modo é uma cosmogonia), mas ele não vai dar isso ao sujeito. Pois é uma obra na qual a virtude e a vileza estão artificialmente separadas, são entes discretos, estanques e separados. É algo pedagógico. Mas não é suficiente para lidar com o mundo adulto. Depois de uma fase inicial, transtória, de “enfermidade”, o discípulo de uma via espiritual tem dois caminhos, ao se sentir razoavelmente “curado”: ou ele abandona o mundo para dedicar-se completamente à oração e ao estudo da doutrina, ou — o caminho que os sufis dizem ser superior — retorna ao mundo, voltando a engajar-se com aquilo que havia ababndonado, mas agora com outros olhos. Com o perdão do clichê new age, o sujeito “fechou o círculo”. Antes, ele tinha uma motivação para ver um filme do Chabrol ou do Buñuel. Agora, ele tem outra. Estes filmes aparecem a seus olhos com nova luz.
Ibrahim traz clareza e erudição a um debate que tem sido dominado ora pela obscuridade, ora pela superficialidade. O fato é que, cada vez mais, pessoas que não gostam de filmes ou de música dispõem-se a escrever (sobre filmes e sobre música!), assumindo o habitual tom inquisitório e imaginando que o fenômeno artístico pode ser sintetizado em um ato banal de "absolvição ou condenação", como se não houvesse um amplo universo de ideias entre uma coisa e outra. Felizmente textos como este nos mostram que há outro caminho; a análise do Ibrahim está muito acima de praticamente tudo que se lê hoje em dia sobre arte no Brasil.
Obrigado, Ibrahim. Seus textos jogam luzes sobre conflitos meus que, às vezes, tenho dificuldade até mesmo de reconhecer e elaborar, mas estão muito presentes. Minha sensação é estar diante de alguém que, tendo caminhado muitíssimo mais, resolve voltar para dar uma ajudinha a quem ainda se enrosca no meio da trilha.