Olá, pessoal.
Pois então… vou tentar fazer algo extremamente difícil para mim, que é manter a periodicidade em minhas publicações. Esta newsletter agora em diante, in sha’ Allah, vai ser semanal.
Talvez seja o meu perfeccionismo — e para mim é difícil seguir a recomendação de um ex-patrão meu, o jornalista Renato Martins, na editora Abril e depois na Revista da FIA, que jornalismo é um eterno rascunho: não queira ser perfeito na matéria de jornal —, mas para mim publicar sai a fórceps. Há uma série de coisas que prometi escrever (a mim mesmo e a amigos), e que estão sendo escritas, e que verão a luz do dia, como um ensaio sobre Quentin Tarantino, outro sobre Jesús Franco (“Posso ser um mau autor, mas sou um autor”, disse o tio Jess), mas enquanto não saem, vou colocar no ar ao menos uma publicação semanal simples, uma coluna de comentários gerais.
A minha primeira coluna, que segue abaixo, será a explicação de um post interessantíssimo de meu bom amigo — e professor — Dr. Ali Hussain, feita nas redes sociais, que eu creio exige ser “descompactado” para ser entendido em suas implicações não apenas profundas, mas de escopo formidavelmente amplo.
Shirk e Shukr
Não é só uma curiosidade linguística que shirk (“idolatria”) e shukr (“gratidão”) em Árabe sejam anagramas — é um dos traços miraculosos da língua árabe que a mudança de lugar de uma das letras-raízes de uma palavra provoque não só uma alteração de sentido nela, mas promova, no rearranjo das letras, a cura a uma moléstia espiritual sinalizada pelo termo original, cura dada pela nova palavra, após a mudança na ordem das letras.
“Shirk”, o pecado de associação — de você dar “sócios” a Deus; de que na Criação há mais de um deus — é algo que provoca pavor a um muçulmano. No psiquismo islâmico, “shirk” (politeísmo) e “kufr” (descrença) são os pecados mais graves em que um ser humano pode incorrer.
Já “shukr” — o estado de gratidão — é um dos estados beatíficos mais elevados a que um ser humano pode aspirar.
Shukr é o antídoto a shirk.
Uma mudança de letra — as palavras árabes são compostas em geral de uma raiz de três letras; no caso, a letra “shin” (ش), a letra “kef” (ك) e a letra “ra” (ر) — e uma transfiguração espiritual ocorre.
Mas o que isso quer dizer? Ou melhor, o que o Dr. Ali Hussain quis dizer com isso?
Talvez seja necessário aqui fazer um preâmbulo “sufi” para explicá-lo.
Fazendo uma brutal simplificação, não é de todo impróprio dizer que a via espiritual islâmica foi historicamente composta na verdade de duas “vias”, uma delas a da ascese (zuhd) — baseada na autodisciplina e no abandono das coisas do nosso baixo mundo — e a segunda via a de shukr (gratidão), a de aceitar as coisas do mundo de forma grata, como uma teofania, como presentes dados por Deus — e que há nestes presentes pistas ao autoconhecimento, ao “conhecer-se a si mesmo”. Pelamordedeus!, saiba que esta simplificação está longe de explicar o rico e complexo domínio espiritual islâmico: minha única intenção aqui é de tentar situar o leitor diante do dilema que se apresenta concretamente a praticamente todos os muçulmanos convertidos no Ocidente.
Feito esse alerta, continuo.
O maior presente que Deus dá a Seu servo são os atributos pessoais que ele, o servo, possui: o seu grau e o seu tipo de inteligência, o seu temperamento, as suas inclinações pessoais e assim por diante. Algumas destas características, nenhum muçulmano vai querer renegá-las, pelo contrário, como a força de vontade, a inteligência, a virtude moral. Mas há um presente de Deus que — coisa anômala! — o muçulmano não só tende em geral a rejeitar, mas a condenar como algo danoso, que é o talento às artes.
Eu já ouvi mais de uma vez em meio islâmico que talento artístico não é algo que deva ser cultivado, ou que, se for, que seja em formas de arte “islâmicas”: na caligrafia, na música tradicional, etc. Mas o que dizer do ficcionista moderno? Ou do músico que só encontra plena expressão pessoal nas formas musicais contemporâneas — no jazz, por exemplo?
O mainstream islâmico é um meio altamente puritano, que coíbe toda forma de espontaneidade pessoal.
É uma situação triste e estarrecedora.
Eu disse acima que a via “sufi” se bifurca em dois caminhos, mas na prática, hoje em dia, quase todas as ordens e confrarias sufis — ao menos aqui no Ocidente — se cristalizaram numa rígida via de zuhd. Ao menos terminaram por aquiescer, conformando-se à sobriedade ascética da via majoritária.
Nem sempre a coisa foi assim. E está longe de sê-lo em terras tradicionais muçulmanas. A Faida Tijaniyya — via da efusão e da superabundância de bençãos espirituais, movimento fundado pelo shaykh Ibrahim Niass — baseou-se (ou ao menos deu plena vasão) à via de shukr. Mas no Ocidente (sobretudo no Brasil, onde o Islam público é na prática não diferente de um protestantismo castrador), o discurso islâmico da gratidão é tão exótico que chega a soar herético.
Na via de shukr, para ficarmos no exemplo da arte, o talento artístico (digamos, o sujeito saber tocar bem guitarra e ter uma banda de rock) não só encontra lugar para si na vida islâmica, mas este talento musical é em si a via de acesso à realização espiritual — é este talento específico, e esta vocação (tocar numa banda de rock) que darão forma à via espiritual do sujeito. A “espiritualidade” é amorfa e incolor, por assim dizer, pois o seu domínio é supraformal. Ao “descer” ao mundo das formas — à manifestação corpórea —, ela precisa encontrar um suporte a seus desdobramentos na vida do crente. “A água toma a cor do recipiente”, é um ditado sufi. Na via de shukr, aceitou-se que toda vocação humana, dentro daquilo que não foi unanimemente condenado pelos muçulmanos (como matar, estuprar, molestar crianças, etc.), pode potencialmente servir de suporte à realização espiritual. Ou seja, o sujeito pode ser um músico de rock e ser um murid, um discípulo de uma tariqa, ordem sufi. Ou melhor dizendo, talvez o fato de ser um músico de rock seja o facilitador, ou mesmo o possibilitador dele se tornar um murid.
Pois aí chegamos ao que o Dr. Ali Hussain expôs: diante do talento — e dos gostos e afinidades pessoais — o seguidor da via de shukr se rende a eles, é agradecido a Deus por ter sido agraciado com eles (ao contrário da via de zuhd, em que o sujeito a princípio desconfia daquilo que se apresenta como repreensível em seu ego (nafs) — por exemplo, gostar e querer tocar rock. Daí o sujeito (quando é um zuhad, um asceta) vai lá e combate a si mesmo; extirpa todo e qualquer vestígio do roqueiro que havia dentro de si. E transforma o seu “músico interior” num munshid, num cantor de música sacra islâmica. Nada contra quem consegue fazer isso. E eu vi muita gente que fez isso com bons resultados. Mas a questão é que esse não é o único caminho, e nem muito menos é o caminho mais fácil.
E nem o mais elevado.
Pois paradoxalmente, a via de shukr, que é muitíssimo mais fácil e suave de seguir do que a via de zuhd, é considerada pelos sufis como a via metafísica mais elevada. A via de zuhd é uma via grosseira, além de pesada, trabalhosa e de longo prazo. A via de shukr é uma via sutil, rápida, leve e fácil. E é a mais elevada. Mas ela não dá status religioso ao seu seguidor. Por isso é tão combatida.
Quando o Dr. Ali Hussain diz que o zuhad, ao renegar os talentos que Deus lhe dá (por exemplo, o músico de rock que entra como discípulo numa tariqa e abandona a música para se dedicar às “coisas sérias” da religião), está na verdade afirmando a sua vontade egoica, colocando-a acima da Vontade do Altíssimo. Ao contrário de con-formar-se (adequar-se à forma que lhe é própria) que lhe foi dada por seu Criador, conforma-se à sua vontade individual.
(Ok, bem sei que, para muita gente, ao voltar-se às coisas do Espírito, elas precisam passar por um período às vezes longo de “desintoxicação” de suas vidas pregressas — tudo precisa ser colocado na balança pessoal. Mas não é disso que estou falando. Estou falando objetivamente da coisa em si).
Negligenciar ou negar os talentos dados por Deus é na verdade, portanto, uma espécie de idolatria — de shirk. “Shirk is to shirk the talents and gifts that God has given you.” Pois o ser humano só irá conseguir conhecer a si mesmo quando estiver confortável consigo mesmo. E muitas vezes, para realizar este intento, precisa aceitar dentro de si características que, socialmente falando, ao meio social religioso circundante, parecem reprováveis. No entanto, quando o sujeito consegue aceitar dentro de si estas características, e, indo além, consegue mesmo ser grato a Deus por elas, ele conseguiu dar um salto espiritual inconcebível ao zuhad. Comparar o progresso do shakur ao progresso do zuhad é como comparar o voo de um falcão com o andar de uma formiguinha.
Mas o mainstream islâmico é um inimigo temível ao shakur: por exemplo, a forma de arte mais acessível, e que poderia ser o suporte mais poderoso à via de shukr — a cultura pop a partir do século XX — é considerada anátema em meio islâmico.
Evitei falar sobre isso durante muitos anos. Em meio islâmico brasileiro, creio que não haja mais esperança: é um meio puritano e superficial. Mas tenho notado que esta mentalidade puritana tem se disseminado no meio intelectualizado cristão, por exemplo. Historicamente, desde o século XX, o artista cristão no Ocidente cultivou uma espécie de separação “Igreja e Estado” dentro de si, como coisas estanques, o que permitiu desenvolver-se artisticamante livre da amarra religiosa — ou ao menos desta arapuca puritana. Mas tenho notado que muitos cristãos brasileiros, tentando encontrar uma síntese espiritual a esta questão têm caído na armadilha do zuhad. É por isso que resolvi voltar a insistir no assunto, depois de anos em silêncio. E aproveito enfim para recomendar vivamente o trabalho de meu amigo Dr. Ali Hussain, sem o qual eu não teria ganhado o instrumental doutrinal para lidar com o problema.
Adendo
Antes que alguma alma maledicente espalhe que, com este artigo, estou tentando queimar o shaykh fulano ou shaykh sicrano, por estarem “oprimindo” os seus murids com uma via ascética “terrível”, ou que alguém venha me perguntar qual o shaykh que oferece essa ou aquela via, queria deixar bem claro que não há um “shaykh de zuhd” e um “shaykh de shukr” — todo shaykh, ou toda via espiritual islâmica (tariqa), é “de zuhd” e “de shukr”, dependendo do momento e da circunstância. Tasawwuf não é um sistema fechado: é uma via viva e maleável, infinitamente. E repetindo o aforismo sufi, “A água toma a cor do recipiente”: o shaykh vai tomar a cor da alma do discípulo, sendo ascético e sóbrio numa circunstância, fervoroso e místico numa outra circunstância, e assim por diante — “O sufi é filho do momento” (ibn al waqt). Lembrando também as palavras do grande santo marroquino Abdul Aziz ad-Dabbagh, que a via dos santos é sempre a de shukr. A questão é a quais Nomes Divinos o santo está submetido naquele determinado momento em sua via pessoal. Ouvi recentemente o causo de um místico egípcio contemporâneo que se recusa a tomar água quando está no Cairo, pois todo o sistema de água encanada depende do sistema bancário para existir — e da usura —, e que portanto tomar água encanada é haram. Ele só toma água de poço. Ele está certo? Sim, está. Isso quer dizer que você não pode mais tomar água encanada (ou água mineral engarrafada, o que dá no mesmo)? Evidentemente que não! Você iria morrer de sede. Há santos que passam a vida submetidos a Nomes Divinos que denotam a pureza extrema, e que por gratidão a esta pureza se abstêm de tudo o mais. Mas há também os Nomes de misericórdia, aos quais é fácil e leve se submeter: são estes os Nomes que devem ser buscados ativamente pelas pessoas ordinárias como nós — e no fim das contas, como diz o hadith, “Atos são julgados por suas intenções”. Khayr in sha Allah.
Valeu pelo texto!
Texto maravilhoso, Ibrahim! Você está coberto de razão. A tensão entre "as coisas da religião" e a expressão adequada dos próprios talentos é, já há muito tempo, uma experiência comum aos artistas convertidos (sejam eles muçulmanos ou cristãos). A idéia de tomar como norma da vida espiritual o aborto dos próprios talentos é muito esquisita, para não dizer coisa pior.